Espuma dos dias — “Barbie e a era nuclear”, por Kirsten Gronlund

Seleção e tradução de Francisco Tavares

7 min de leitura

Barbie e a era nuclear

 Por Kirsten Gronlund

Publicado por  em 20 de Agosto de 2023 (ver aqui)

 

Imagens de ‘Barbie’ e ‘Oppenheimer’. Crédito da foto: Warner Bros. e Universal Pictures

 

Em 1945, contra o pano de fundo seco e ensolarado do sudoeste americano, ocorreram dois eventos que alterariam o curso da história. Um deles foi o Trinity, a primeira detonação nuclear do mundo, e o momento que levaria Robert Oppenheimer a citar do Bhagavad Gita: “agora converti-me na morte, o destruidor de mundos”. O outro foi a fundação da Mattel.

A coincidência das datas de lançamento de Oppenheimer–Barbie incitou um frenesi entre o público que vai ao cinema precisamente porque eles parecem tão contraditórios. E, no entanto, no fundo, os dois compartilham mais do que mostra a câmara. São, no seu cerne, ambas histórias da América em guerra – uma guerra definida pelo sucesso de Oppenheimer e dos seus colegas, e que por sua vez definiria a boneca mais vendido. O mundo em que Barbie nasceu, e do qual ela se tornaria símbolo e soldado, não existia antes dessa primeira detonação bem-sucedida nas primeiras horas de 16 de Julho.

Para aqueles que estavam no local de testes de Trinity, a gravidade do que tinham testemunhado ficou imediatamente clara. Como disse William Laurance, jornalista do New York Times selecionado pelos militares para cobrir o evento: “sentimo-nos como se tivesse tido o privilégio de testemunhar o nascimento do mundo – de estar presente no momento da criação, quando o Senhor disse: ‘Haja luz’.”A era nuclear tinha começado.

Na esteira do Projeto Manhattan, a guerra, a economia e a relação entre os dois emergiriam fundamentalmente alteradas. A corrida armamentista nuclear que se seguiu estabeleceria os desafios da Guerra Fria, dando à luta ideológica entre o capitalismo americano e o comunismo soviético um peso existencial. Uma vez que a ameaça de destruição mutuamente assegurada obrigava as duas superpotências a afastarem-se do conflito directo e a disputar o poder de outras formas, os EUA iriam utilizar cada vez mais a sua economia como arma de guerra.

Em 1951, o sociólogo David Reisman publicou um relato fictício de uma campanha de bombardeamento americano contra os soviéticos com o nome de “Operação abundância”. Alcunhada de” A Guerra do Nylon”, a campanha que Reisman imaginou não envolvia bombas reais, mas sim o bombardeamento aéreo do país com meias de nylon, maços de cigarros, ioiôs e kits domésticos. Foi, escreveu, “uma ideia de uma simplicidade desarmante: que, se lhe fosse permitido provar as riquezas da América, o povo russo não toleraria por muito tempo os chefes que lhes deram tanques e espiões em vez de aspiradores de pó e salões de beleza.”

Esta foi, em certo sentido, a conclusão lógica de uma sinergia económica gerada durante a Segunda Guerra Mundial e sintetizada pelo Projecto Manhattan. Com um preço de mais de US $ 2 mil milhões (mais de US $30 mil milhões em 2023), o projeto envolveu uma colaboração sem precedentes entre os setores militar e civil, como o mundo fabril e o mundo universitário. Este espírito de colaboração sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, com o incipiente complexo militar-industrial a expandir-se rapidamente durante a Guerra Fria.

O disparo dos gastos com defesa gerou novas indústrias e empregos, alimentando um período de prosperidade e expandindo rapidamente a classe média americana. Os americanos, emergindo de décadas de depressão e racionamento de guerra, estavam preparados para consumir como nunca antes. E a ameaça sempre presente de um ataque nuclear criou uma atitude defensiva em torno do modo de vida americano [american way of life] – uma vida caracterizada, em grande parte, pela posse material. A “Liberdade” tornou-se o direito de consumir livremente; Consumir tornou-se um dever patriótico, um meio não só de encontrar realização pessoal, mas também de manter a economia nacional forte e os comunistas à distância.

À medida que os americanos recém-libertos correram para se embrenhar nas armadilhas do Sonho Americano, as mesmas empresas que produziam esses confortos materiais estavam empenhadas em produzir os materiais de guerra. Os fabricantes de consumo basearam-se na experiência da indústria militar, com inovações do tempo de guerra a inundarem as indústrias de consumo e os seus produtos. O plástico, cuja produção quadruplicou durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se a força vital de uma nova era de produção em massa.

Explorando o boom do pós-guerra em materiais de fabricação baratos e bebês, a indústria de brinquedos qmericana explodiu. As crianças, mais do que nunca, tornaram—se um grupo demográfico de consumo próprio – e entre 1939 e 1953 o valor grossista da indústria cresceu de 86,7 milhões de dólares para 608,2 milhões de dólares.

Em 1955, a ainda verde Mattel tomaria duas decisões que ajudariam a impulsioná-la para a vanguarda da indústria. Num movimento que revolucionou a publicidade de brinquedos, a empresa concordou em patrocinar o Mickey Mouse Club show, conectando o seu nome e produtos diretamente ao público infantil. E eles contrataram o engenheiro da Raytheon, Jack Ryan – projetista dos sistemas de mísseis guiados Hawk e Sparrow – como chefe de pesquisa e desenvolvimento. Contratado pela sua “experiência na era espacial”, Ryan ficaria na empresa durante vinte anos, desenvolvendo uma série de brinquedos duradouros como Chatty Cathy e Hot Wheels. Mas o design pelo qual ele é mais conhecido – cujo nome aparece nos títulos da maioria dos seus obituários – é o da boneca Barbie.

Embora Ryan fizesse melhorias importantes na construção da Barbie, a sua figura loira esbelta foi modelada na boneca alemã Bild Lilli, um presente humorístico para adultos que chamou a atenção da cofundadora da Mattel, Ruth Handler, numa viagem à Europa. O personagem de Lilli no qual a boneca se baseou teve origem numa história em quadrinhos criada para a edição inaugural do Bild, um tablóide de extrema direita fundado na Alemanha Ocidental em 1952 e tão dedicado à causa anticomunista que as autoridades da Alemanha Oriental criariam seu próprio tablóide para combater a propaganda do Bild.

Lilli foi uma criação essencialmente capitalista, uma caça-fortunas que conseguiu sobreviver no mundo do pós-guerra seduzindo homens ricos. O seu aspeto era parte integrantes deste objetivo. Ela aparece frequentemente em vários estados de nudez; por exemplo, segurando um jornal sobre o seu corpo nu e acompanhada pelo diálogo “tivemos uma discussão e ele levou de volta todos os presentes que me deu”. Embora os criadores da Barbie tivessem eliminado esta história de fundo (e eventualmente colocassem a boneca fora de produção), o corpo de Lilli, um produto das condições socioeconómicas em que ela foi criada, permaneceria intacto.

A boneca Lilli representava o tipo de rapariga que a riqueza lhe podia proporcionar. Ela personificava – tanto como personagem quanto como produto – um consumismo que se alinhava com os objetivos políticos americanos na Alemanha Ocidental. Desde 1948, a Alemanha Ocidental vinha a receber ajuda económica americana no âmbito do Plano Marshall, uma iniciativa destinada a revitalizar as economias da Europa Ocidental dizimada pela guerra. O plano foi, pelo menos em parte, concebido para reduzir e minar o poder soviético na região, garantindo a atractividade do capitalismo para os seus habitantes. Numa linguagem paralela à de Reisman na operação Abundância, O político republicano e futuro secretário de Estado John Foster Dulles afirmou referindo-se à necessidade do plano: “a única maneira no mundo de unir a Alemanha é criar umas condições no oeste da Europa que sejam tão atraentes, que suscitem tal atração no leste, que os soviéticos não serão capazes de manter o controlo da Alemanha de Leste.”

Em 1959, ano de lançamento da Barbie, os EUA estavam mais desesperados do que nunca para afirmar a sua supremacia económica. Em 1948, ainda era a única potência nuclear do mundo, desfrutando dos frutos de uma economia em expansão do pós-guerra, enquanto a URSS se recompunha da destruição causada pela ocupação nazi. Mas, no final da década de 1950, os soviéticos desfrutaram de uma série de sucessos económicos e científicos sem equivalente nos EUA. Preocupado com que tal êxito pudesse tornar o modelo soviético mais atraente para o mundo em desenvolvimento, o então presidente Eisenhower pôs-se à cabeça de uma ofensiva psicológica para miná-lo.

As duas nações organizaram uma espécie de intercâmbio cultural em 1959—Uma Exposição Nacional americana em Moscovo e uma Exposição soviética em Nova York – supostamente destinada a promover a compreensão e a cooperação mútuas. Mas o verdadeiro objectivo para os americanos, que fizeram tudo o que podiam nas suas exibições de carros americanos, modas, inovações domésticas e muito mais, era ilustrar aos cidadãos da URSS a abundância do consumidor que está a ser produzida pelo bom e velho capitalismo americano. Esta exibição, esperavam os americanos, venderia aos soviéticos o sonho americano e os convencê-los-ia de que o seu próprio governo – e o sistema económico que representava – estava a fracassar.

Até que ponto a exposição conseguiu este objectivo continua a ser objecto de debate. Mas as exigências dos consumidores eram certamente uma preocupação crescente para a liderança soviética. Por volta dessa época, o governo começou a coletar dados sobre preferências e atitudes dos consumidores e até mesmo a definir um orçamento de consumo familiar com subsídios para coisas como frigoríficos e televisores. O então Primeiro-Ministro Khrushchev, embora não tivesse abandonado a ênfase da economia soviética na defesa e na indústria pesada, fez repetidas promessas de que o consumo per capita soviético ultrapassaria o dos Estados Unidos.

“Deixem os russos querer o que nós temos”, escreveu o industrial americano e Conselheiro Especial da exposição Norman Winston, refletindo novamente a lógica da operação Abundância. “Que eles clamem por isso dos seus líderes. E que o clamor seja tão alto que exija resposta. Talvez então os líderes russos, para manter o seu povo feliz, desviem algumas das suas instalações de fabrico de armas para a produção de móveis, misturadoras eléctricas e casas pré-fabricadas.”

Lançada apenas alguns meses antes da abertura da Exposição Nacional americana em Moscovo, a Barbie – com a sua vasta gama de roupas e acessórios – era um símbolo oportuno de “o que temos”, um ícone do consumo que a exposição tinha trabalhado tão arduamente para vender. Entre 1959 e 1976, cerca de 43 jogos Barbie, 32 conjuntos de móveis e 16 veículos foram disponibilizados para compra, e nos EUA a Mattel comercializaria umas colossais 1179 roupas: 656 para a Barbie e mais para Ken, Skipper, primo Francie e outros membros do universo Barbie. Como disse a Business Week em 1961: “não são as bonecas, são as roupas.”

O seu complexo guarda-roupa, incluindo roupas como “o conjunto para picnic”, “a compradora urbana” e “Barbie-Q” (roupa para churrascos), pretendia ensinar às meninas de classe média o que vestir onde, uma função enfatizada na estratégia de marketing da Mattel: “convencer a mãe de que a Barbie fará uma ‘pequena dama equilibrada’ da sua filha atrevida, desleixada e possivelmente maria-rapaz. Sublinhe-se os detalhes das roupas e o modo como isso pode ensinar uma menina vulgar a usar acessórios”. Ela era, em outras palavras, uma ferramenta para produzir a próxima geração de consumidores americanos, vendendo a noção de que a chave para a felicidade era ter mais, mais, mais.

A Barbie nunca foi colocada à venda na União Soviética. A sua estreia na Rússia seria em 1992, coincidindo estreitamente com a dissolução da URSS. Uma manchete do L.A.Times na sua chegada proclamava: “as meninas sonham em possuí-la, os pais em poder pagá-la” – o seu significado na imaginação americana como um símbolo imaculado da supremacia dos EUA com o passar do tempo.

Hoje em dia, a Barbie representa cerca de um terço das vendas anuais de cerca de US $5 mil milhões da Mattel. Ela é, nas palavras da ex-presidente e CEO da Mattel, Jill Barad, uma “marca de poder global”. Enquanto faz a sua estreia no cinema, o seu espírito consumista está em plena exibição com uma impressionante variedade de colaborações de marcas, que vão além das óbvias roupas, esmaltes e patins, desde rosquinhas a escovas de dentes, Xboxes, velas e … a lista continua.

Ao longo dos seus 64 anos de existência, o significado cultural e político da Barbie escapou a uma interpretação fácil. Ela foi apontada como um modelo de feminilidade independente e vilipendiada como uma vendedora de padrões de beleza impossíveis. Ela tem sido tida como um ícone feminista e condenada como uma fantasia sexista. Mas uma coisa é certa: a Barbie é capitalista. O seu objetivo básico não é capacitar as meninas ou mantê-las acorrentadas ao olhar masculino. É, acima de tudo, fazê-las consumir – bonecas, roupas, sapatos, casas de sonho. É incutir nelas o respeito pelo que é material: em suma, vender o Sonho Americano, preservar o modo de vida americano.

 

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A autora: Kirsten Gronlund é uma escritora e editora que vive em Brooklyn, Nova York. Atualmente, ela atua como editora da Web da ONU Mulheres e trabalhou anteriormente como diretora Editorial para a organização sem fins lucrativos Future of Life. Estudou Inglês na Universidade de Cornell, concentrando-se em teoria crítica. Os seus interesses incluem género, política global, media e cultura pop, com foco em onde e como eles se cruzam.

 

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